O Dilema de Chagos: justiça histórica x interesses estratégicos
- ogladio2024
- 27 de nov. de 2024
- 5 min de leitura
Por Diego Mendonça de Sales Pérez Corzón
CONTEXTO:
A decisão do Reino Unido de devolver o remoto Arquipélago de Chagos às Ilhas Maurício, localizado a mais de 1.600 km da terra firme, desencadeou uma série de debates complexos na arena internacional. A transferência não se limita a questões de descolonização e soberania, mas também envolve disputas internas no Reino Unido e significativas implicações geoestratégicas, sobretudo pela presença da base militar americana de Diego Garcia, um ativo estratégico crucial para a segurança nuclear dos Estados Unidos. Sob a luz de decisões favoráveis da Corte Internacional de Justiça e da crescente pressão da comunidade internacional, a devolução das Chagos se configura como um teste crucial para a compatibilização de interesses nacionais com os princípios de justiça histórica.
Após uma série de reivindicações pela soberania do Arquipélago de Chagos, em 25 de fevereiro de 2019, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) reconheceu o direito das Ilhas Maurício sobre o território. Situadas no Oceano Índico, próximo à costa africana, as ilhas constituem uma questão histórica-colonial para Maurício. No entanto, a vitória jurídica não se traduziu imediatamente em mudanças práticas, com o Reino Unido inicialmente rejeitando a decisão da corte, argumentando que o parecer da CIJ tinha apenas caráter consultivo.
Essa decisão deu início a uma batalha prolongada para o pequeno país insular africano, que buscava recuperar a soberania das ilhas, separadas de Maurício de forma considerada ilegal pouco antes de sua independência em 1968, com o objetivo de criar uma colônia: o Território Britânico do Oceano Índico (BIOT, na sigla em inglês).
Após treze rodadas de negociações, iniciadas em 2022, e respaldadas pelo reconhecimento da CIJ e pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2019 e 2021, o Reino Unido anunciou, em 3 de outubro, que chegou a um acordo para a devolução das Ilhas Chagos a Maurício, encerrando décadas de disputas e negociações sobre o último domínio britânico na África.
EXPULSÃO DOS CHAGOSSIANOS:
Ao separar as Ilhas Chagos de Maurício, o Reino Unido expulsou até 2.000 habitantes, com o objetivo de ceder Diego Garcia, a maior ilha do arquipélago, aos Estados Unidos para uso militar. Desde então, os dois países mantêm uma base conjunta no local, essencial para suas estratégias de defesa. A remoção forçada dos moradores permitiu que Reino Unido e EUA controlassem o território sem a interferência de sua população originária, violando os direitos dos habitantes.
Notícias revelam que, para legitimar essa ação, o Reino Unido declarou falsamente à ONU que as ilhas não tinham uma população permanente, evitando, assim, relatar seu domínio colonial. Na realidade, a comunidade chagossiana vivia ali há séculos, sustentando uma cultura própria e tradicional.
Toda a população do arquipélago foi removida à força entre 1967 e 1973 e impedida de retornar, deixando ex-ilhéus dispersos entre o Reino Unido, Ilhas Maurício e Seicheles. Para a Corte Internacional de Justiça, encerrar a administração britânica nas Ilhas Chagos é essencial para completar o processo de descolonização de Maurício, assegurando que o direito à autodeterminação dos chagossianos seja respeitado.
BASE DE DIEGO GARCIA E O TRATADO DE PELINDABA
Ao longo das negociações, Maurício demonstrou abertura para um acordo que permitisse a continuidade da base militar em Diego Garcia, inclusive com os equipamentos já instalados. No entanto, um ponto crucial de divergência emergiu: o papel da base no suporte a plataformas nucleares.
Diego Garcia hospeda regularmente submarinos nucleares e bombardeiros capazes de portar armas nucleares. O acordo entre o Reino Unido e os EUA prevê a livre movimentação de material nuclear para a ilha. Embora a extensão do arsenal nuclear presente na base seja incerta, sua importância estratégica para os Estados Unidos seria significativamente reduzida caso armas nucleares fossem proibidas no arquipélago.
Essa questão se torna ainda mais complexa quando se considera o Tratado de Pelindaba, 1996. Maurício, como membro da União Africana e signatário do tratado, está comprometido com uma África livre de armas nucleares. O tratado se aplica a todo o território mauriciano, incluindo as Ilhas Chagos. A presença de armas nucleares em Diego Garcia, portanto, contradiz os compromissos assumidos por Maurício.
O Reino Unido, também signatário do Tratado de Pelindaba, apresenta uma interpretação controversa. Uma nota de rodapé, inserida a pedido do governo britânico (pela FCO – Foreign & Commonwealth Office), exclui Diego Garcia da definição de zona livre de armas nucleares. Essa interpretação, no entanto, é contestada por Maurício e pela comunidade internacional, que considera a nota como uma tentativa de burlar as obrigações do tratado.
O Primeiro-Ministro de Maurício, Pravind Jugnauth, já destacava na Assembleia Geral da ONU em 2019 que seu governo estava "preparado para entrar em um acordo de longo prazo"; que "permitiria a operação sem obstáculos da instalação de defesa, de acordo com o direito internacional".
TRATADO:
De acordo com a declaração do Foregin Secretary David Lammy (Secretário das Relações Exteriores), o acordo entre o Reino Unido e Maurício representa um passo significativo para resolver a disputa histórica sobre as Ilhas Chagos. O tratado garante a soberania de Maurício sobre todo o arquipélago, incluindo Diego Garcia, enquanto permite que o Reino Unido mantenha uma presença militar na ilha por um período prolongado.
A base militar continuará sob controle total do Reino Unido, com Maurício autorizando o exercício dos direitos e autoridades soberanos do Reino Unido em relação a Diego Garcia por um período inicial de 99 anos, com a possibilidade de extensão. O acordo também garante o apoio de Maurício a robustas medidas de segurança, incluindo a prevenção do acesso de forças armadas estrangeiras às ilhas externas.
Em troca, o Reino Unido reconhece os direitos e os erros do passado, incluindo a remoção forçada dos chagossianos na década de 1960. Maurício terá liberdade para implementar um programa de reassentamento em outras ilhas do arquipélago, além de Diego Garcia.
O Reino Unido e Maurício também se comprometeram a apoiar o bem-estar dos chagossianos, estabelecendo um novo fundo fiduciário capitalizado pelo Reino Unido, para fornecer apoio econômico adicional aos chagossianos em território britânico e mantendo o caminho para a obtenção da cidadania britânica.
Além disso, o Secretário fez questão de ressaltar que o acordo não afeta a posição do Reino Unido em relação a outros Territórios Ultramarinos, como as Ilhas Falkland e Gibraltar, cuja soberania não está em negociação. Afirmando que as situações não são comparáveis.
Após as eleições em Maurício, o governo dará início ao processo de assinatura do tratado. Em seguida, o Reino Unido pretende ratificar o tratado em 2025, apresentando-o ao Parlamento para análise e aprovação.
A devolução das Ilhas Chagos às Ilhas Maurício representa um marco histórico na luta pela justiça e pela reparação de injustiças coloniais. Ao reconhecer o direito inalienável de autodeterminação dos chagossianos e oferecer mecanismos concretos de reparação, a comunidade internacional demonstra um compromisso renovado com os princípios da Carta das Nações Unidas. Essa decisão não apenas restitui a soberania de Maurício, mas também abre caminho para que outros povos colonizados busquem a reparação por crimes do passado, estabelecendo um importante precedente para a justiça internacional.
No entanto, a questão de Chagos também revela a complexidade das relações internacionais e a necessidade de encontrar soluções pragmáticas que atendam a diferentes interesses. A manutenção da base militar em Diego Garcia é um exemplo claro dessa necessidade de equilibrar princípios de justiça com exigências geopolíticas. Essa decisão demonstra que é possível conciliar interesses nacionais com os princípios da justiça internacional, abrindo caminho para a resolução de outros conflitos territoriais de longa data.
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