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QUANDO SURGEM MUNICÍPIOS TEOCRÁTICOS: UMA COMPARAÇÃO ENTRE EUA E BRASIL

  • ogladio2024
  • 18 de nov. de 2024
  • 7 min de leitura

Atualizado: 22 de nov. de 2024

Por Leonardo Neves Ruiz 


A existência de países cuja política é vinculada à religião (e até mesmo dependentes dela)  não é mistério para ninguém, sendo que a própria História nos oferece  muitos exemplos. Porém, não encontramos hoje federações que decidiram se  “aventurar” pelo caminho teocrático. 

Um estado federalista possui entes federativos dotados de certa autonomia,  podendo se autorregular e autoadministrar (com limitações). Esses pontos,  analisados de maneira conjunta, possibilitam o surgimento de uma dúvida um  tanto incomum, mas muito curiosa: poderiam existir municípios teocráticos? 

A questão é complexa. Contudo, na prática, já existiram alguns. A análise a  ser feita aqui é voltada a entender se isso é juridicamente possível ou não. 

Antes de adentrarmos a parte jurídica mais profundamente, é interessante  observar dois casos bastante peculiares que demonstram a ocorrência  de municípios teocráticos nos EUA e no Brasil: Rajneeshpuram e Canudos. 

Conforme demonstrado no interessantíssimo documentário produzido pela  Netflix, Wild Wild Country, Rajneeshpuram foi uma comunidade religiosa no  condado de Wasco, Oregon, incorporada como uma cidade entre 1981 e 1988 nos  Estados Unidos por um povo que se auto intitulava Rajneeshees e que seguia um  líder religioso chamado Rajneesh. 

Inicialmente, a proposta era a criação de uma comunidade em um terreno  particular comprado pelo líder do culto para que seus seguidores pudessem viver  ali seguindo sua fé e filosofia de vida sem interferências externas, eis que estariam  no “país da liberdade”. 

O local, entretanto, era muito próximo de uma pequeníssima e conservadora  cidade chamada Antelope. A proximidade logo possibilitou a ocorrência de atritos  entre a população local e os recém-chegados. O que começou com pequenas  intrigas se tornou pouco a pouco em um conflito cultural e político, tornando a vida  na região bastante tensa. 

Os Rajneeshees possuíam muito dinheiro e contavam com diversos  advogados (muitos seguidores da própria doutrina), de forma que puderam se 

utilizar de seus serviços para manejarem as leis estaduais e federais, incorporando-se à Antelope. Essa aglomeração entre a antiga propriedade privada do grupo e a  cidade gerou um município novo, no qual a maioria absoluta dos moradores eram  Rajneeshees. Assim, puderam eleger seus representantes administrar e regular a  cidade, vinculando-a completamente à sua religião. 

A polícia, escolas, bombeiros, tudo era criado e administrado seguindo  as normas religiosas da comunidade. Isso, é claro, causou conflitos políticos,  intensificados por ações tomadas por e contra a comunidade (que ganharam  visibilidade nacional). 

A história é longa e cheia de reviravoltas, mas, no final, a comunidade  acabou se dissolvendo com a saída de Rajneesh dos EUA e o município voltou ao  que era antes. 

Sobre o caso em questão, houve até mesmo uma decisão (Estado do Oregon  vs. Rajneeshpuram) na qual o district court do Oregon, órgão federal da jurisdição  norte-americana, acatou o pedido do Oregon para declarar que (i) o estado não  fosse obrigado a reconhecer o status municipal de Rajneeshpuram e (ii) o Estado  de Oregon não seria obrigado a pagar verbas públicas ou fornecer serviços públicos  à cidade de Rajneeshpuram porque isso violaria as Constituições do Oregon e dos  Estados Unidos. Os julgadores entenderam que a existência e operação da cidade  de Rajneeshpuram representariam “um envolvimento excessivo do governo com a  religião”. 

De fato, as instituições, tanto federais quanto estaduais, tentaram intervir na  comunidade para garantir que, por exemplo, os policiais nomeados na cidade  seguissem as leis vigentes à época e não a quesitos religiosos. Também se gerou  um grande debate acerca das escolas públicas que, criadas e administradas sob  fundamentos religiosos, poderiam comprometer a laicidade do Estado. 

Apesar do grande embate político, legislativo e judicial que rondou a breve  existência dessa comunidade, deve-se ressaltar que a manutenção desse  município teocrático não foi proibida nem por decisões judiciais nem por qualquer  outro ato normativo, algo interessante, principalmente quando analisado sob a  ótica da primeira emenda da constituição americana. 

Em terras mais ao sul, mais especificamente no Nordeste do Brasil, menos  de 100 anos antes, houve o surgimento de uma comunidade religiosa no interior do  sertão. Uma pequena vila conhecida como Canudos. 

A vila, uma espécie de coletividade agrícola autossustentável e religiosa  (descrevendo-se de maneira bastante simplista), agrupou cerca de 25 mil pessoas  e se fundava em torno da figura religiosa de Antônio Conselheiro.

Se observarmos a Constituição de 1891 (art. 11, II), poderemos notar que  não seria possível o estabelecimento de uma religião por um estado ou pela União.  Nada se dizia, porém, sobre os municípios. O seu art. 68 até mesmo garantia que  “os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos  Municípios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse”. Considerando-se  que nada que é proibido é permitido, seria possível afirmar que haveria uma base  constitucional para a construção de um município religioso na área. 

Apesar da base legal, a República, recém instaurada, querendo se  autoafirmar e motivada por diversos atritos ocorridos na região entre Canudos e a  população da cidade de Juazeiro, além de inspirada por um forte preconceito com  a população, causou um massacre, enviando diversas expedições militares para o  vilarejo. 

Dos exemplos de Canudos e Rashneeshpuram podemos concluir que, ainda  que o modelo federalista sustentasse a possibilidade de um município ser  vinculado a uma religião, a destruição dessas comunidades se deu por conta de  intolerância, preconceito, atritos e problemas políticos. 

Mas, e atualmente? Para entendermos a possibilidade da criação de um  município vinculado a uma religião devemos observar o processo de instituição de  um município, tanto nos EUA, quanto no Brasil. 

Como o modelo federativo dos EUA é muito menos centralizado que o  brasileiro, permitindo que os entes administrativos se autogovernem com mais  autonomia, a criação de municípios no país não é feita de maneira unânime,  seguindo principalmente os regramentos de cada um de seus estados. 

O texto interessante do Carl Vinson Institute of Government, produzido em  parceria com a Universidade da Geórgia, aponta quais seriam os requisitos  específicos de cada estado norte-americano para a criação de seus municípios  (que são muito variados). Alguns deles não exigem muito (i.e. New Hampshire, que  apenas requer a expedição de um ato especial do legislativo estadual), enquanto  outros exigem uma dúzia de requisitos, (i.e. o estado de New York). 

Mesmo que se conseguisse criar o município, nos depararíamos com outro  grande obstáculo: o envio de fluxos de financiamento e criação das normas, que  esbarrariam seriamente na primeira emenda (“o congresso não deverá fazer  qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre  exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das  pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que  sejam feitas reparações de queixas” – tradução livre), além claro, do precedente  mencionado no caso dos Rajneeshees, tendo sido reconhecido que não seria possível o envio de recursos públicos para instituições públicas claramente ligadas  à religião. 

Além disso, o município teria que garantir a liberdade de culto a outras  religiões, não poderia utilizar dinheiro público para financiar a religião e teria que  obedecer às leis estaduais e federais. 

Todavia, sabemos que, no Direito, nada é uma simples dualidade  (principalmente em um sistema de precedentes como o norte-americano). Então  não se pode dizer que a formação de um “município teocrático” seja ali  completamente impossível, mas apenas bastante difícil de ocorrer, já que  enfrentaria diversos entraves durante sua existência. 

No Brasil, o processo de criação de municípios é complexo e está  “suspenso” por ora. O que, por si, já impossibilitaria a criação de qualquer  município. Mas isso tem um motivo. 

Após a promulgação da Carta de 1988, houve uma explosão da criação de  municípios no país. Na época, o artigo 18, § 4º, da Constituição apenas exigia que, na criação desses entes, (i) fossem preservadas a continuidade  a  unidade histórico-cultural do ambiente urbano; (ii) houvesse aprovação por meio de Lei Estadual, obedecidos os requisitos previstos em Lei Complementar estadual; e (iii) fosse realizado consulta prévia, por plebiscito, às  populações diretamente interessadas.”.

Obviamente, são requisitos muito amplos, abstratos e de fácil  preenchimento. Assim, amparados nessa simplicidade, os estados brasileiros  passaram a criar normas também pouco complexas e, entre 1988 e 1996, surgiram  cerca de 1.200 novas municipalidades no país

Mas o surgimento de um ente federativo gera novas despesas e a  necessidade de um aparelhamento na localidade, de forma que esse “turbilhão” de  novos municípios trouxe consequências nos gastos e na administração dessas  áreas, forçando a União a tomar medidas mais restritivas. 

A Constituição foi então alterada (EC nº. 15/96), passando a ordenar que,  para tal, deve haver (i) aprovação de lei complementar federal com fixação de  período para a criação e alteração de municípios; (ii) edição de lei que verse sobre  os Estudos de Viabilidade Municipal; (iii) publicação de lei estadual autorizativa; e (iv) consulta prévia, mediante plebiscito, às populações das cidades envolvidas,  requisitos que foram recentemente reconhecidos pelo STF em ação direta de  inconstitucionalidade (nº. 4.711). Logo, até que não sejam atendidos todos os  pontos exigidos pela Constituição, não será possível constituir novos municípios.

Ainda que fosse possível constituí-los, apenas para seguir nossa análise, o  art. 19, I, da CF veda expressamente que o ente municipal estabeleça cultos  religiosos ou igrejas, subvencione-os, ou mantenha com eles ou seus  representantes relações de dependência ou aliança. Portanto, pelo menos em tese,  caso um dia isso ocorresse, poderia até mesmo haver uma intervenção federal  fundamentada no art. 35, IV, da CF. Ou seja, a resposta é um enfático e direto não. 

Por fim, o discurso sobre a criação de municípios vinculados a uma religião  em pleno século XXI pode parecer um fora da realidade. Mas sabemos que o  alinhamento do governo com a religião não é algo novo, além de sempre assombrar  as nossas instituições. E por que não os municípios? 

Também é de se lembrar que vivemos em uma época de grande pluralidade,  na qual há o reconhecimento de novas “nações” dentro de um mesmo país, ainda  que de formas não institucionalizadas. Logo, caso o governo decida reconhecer  legalmente o território e administração de um grupo em particular, essa  possibilidade poderia ser levantada. 

De qualquer forma, é preciso debater se seria ou não ideal que essas  comunidades criassem seus próprios entes federativos e gerissem o dinheiro  público em pró de seus costumes e de sua fé. Desse modo, ao invés de novos  massacres e ataques políticos, talvez pudéssemos encontrar soluções pacíficas e  inteligentes.

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