top of page

O Sistema Prisional Como Local de Sacrifício

  • ogladio2024
  • 20 de mai.
  • 8 min de leitura

Por Ana Clara Camello da Silva



1. O Sacrifício do Corpo Negro.


A simbologia desempenha um papel fundamental na construção da narrativa histórica de uma nação, representando um consenso de objetivos que são sacralizados por meio de documentos, edifícios e obras de arte. Estes elementos definem a estrutura da verdade sobre um passado comum. A partir dessa narrativa, tanto cidadãos quanto estrangeiros aprendem a distinguir o país em questão dos demais, além de adquirirem noções sobre a própria identidade.

A expressão "narrativa histórica" e o conceito de "mito fundador" operam de

forma similar. A diferença entre ambos reside no fato de que a narrativa histórica é o mito fundador legitimado pelo poder vigente no momento da construção da identidade de uma sociedade, perpetuado pelos interesses dominantes. A narrativa histórica é o meio pelo qual o poder define como a imagem nacional será formada e quais personagens terão relevância dentro dela. A história nacional, assim, serve para moldar o que a nação será, à medida que descreve o que ela foi.

O contrato social, por sua vez, é a linguagem que explica, de maneira tácita ou explícita, as ideias de soberania popular, legalidade e direitos fundamentais na modernidade e contemporaneidade. Assim, a escolha do contrato social como base da narrativa histórica global torna-se mais atraente para o poder vigente do que uma narrativa centrada na luta racial.

Nos moldes de Rousseau, o povo torna-se verdadeiramente livre ao estabelecer leis e seguí-las. O contrato social garante os direitos dos indivíduos com base em uma moralidade legitimada pela produção legislativa, que reflete apenas a vontade geral. Com o desenvolvimento da modernidade, o contratualismo tornou-se um instrumento de defesa dos interesses do homem burguês, fundamentado em ideais individualistas e liberais. A controvérsia é demonstrada à medida que, enquanto o europeu reivindicava liberdade e autonomia para si e seus semelhantes, ele escravizava outros homens em territórios além-mar.

Por isso, a escolha do contrato social como narrativa histórica global revela-se como uma reafirmação do poder da parcela vitoriosa nos conflitos sociais que fundaram a sociedade moderna. Essa parcela, por meio da narrativa, foi capaz de apagar e silenciar aqueles que não se encaixavam na construção da identidade nacional desejada.

No Brasil, foram silenciados os levantes e revoltas da população negra escravizada na luta por sua liberdade, e canonizada a figura da Princesa “salvadora” que aboliu a escravatura no treze de maio. É também condenado ao plano de fundo o papel dos negros na Guerra do Paraguai e nos movimentos populares no fim do período monárquico, para que fosse perpetuada a proclamação da República no quinze de novembro. Assim, é suprimida a importância da participação do marginalizado nos momentos históricos cruciais à construção da identidade nacional, para que fosse atribuída ao país a imagem mais “europeizada” – e branca – possível.

Em países colonizados, o sofrimento do escravizado, nativo ou traficado, foi parte do seu processo de construção. O sacrifício desses corpos foi a base de toda estrutura política, social e, principalmente, econômica de suas metrópoles. O corpo do escravizado deixa de ser considerado humano para que o quórum de crueldade imputado a ele seja naturalizado e justificado, não causando qualquer mancha à imagem do escravizador.

Em situações de medo generalizado, arbitrariedade ou ausência de reconhecimento mútuo - típicas de instabilidade sociopolítica - os indivíduos tendem a transformar esses sentimentos em violência, canalizando-a para um “objeto sacrificável”. Marcos Queiroz introduz o conceito de sacrifício, entendido como um meio de extinguir os ânimos violentos gerados pela instabilidade social e, por meio de sua execução, criar ou restaurar a ordem social. Dessa forma, a tese do sacrifício é apresentada como a narrativa histórica da formação das sociedades pela perspectiva do marginalizado.

Entretanto, o sacrifício não pode recair sobre qualquer vítima. Para que ela assuma o papel de bode expiatório, é necessário que carregue marcas de marginalização, que a tornem o "outro" perante seus algozes. A raça, utilizada historicamente como principal fator de diferenciação durante o surgimento do capitalismo, permitiu que "os outros" (os não-brancos) fossem excluídos da condição humana, tornando-se passíveis de serem sacrificados e submetidos a condições desumanas, adequando-se como “objetos sacrificáveis”.

A tese do sacrifício de sangue estabelece que a escolha da vítima deve condensar uma série de estereótipos, que façam com que ela seja vista como a causadora do mal que aflige a todos, concentrando sobre si todas as suspeitas que prejudicam as relações sociais. Nesse sentido, quando o sacrifício de sangue é realizado, a vítima, cujas características diferenciadoras a qualificam como objeto “sacrificável”, é associada a todos os males que afetam as relações humanas, sendo vista como obstáculo à ordem social vigente. Por isso, a imposição de sofrimento ao ser funciona como válvula de escape da classe dominante, que deposita no corpo marginalizado suas frustrações e anseios sociais, de forma que a execução opera como ponto crucial para retomada de controle.

A lógica do sacrifício, quando associada à raça, gera efeitos complexos. O fato de a sociedade brasileira ter sido erguida sob o sofrimento do corpo escravizado perpetuou a população negra como refém do que Frantz Fanon chamou de “zona do não ser”. A consideração uma vez científica de que o negro era menos humano não foi extinta no treze de maio de 1888. A perpetuação da diferenciação racial ao longo do tempo fez com que a figura do negro mantivesse-se atrelada à condição de bode expiatório em sociedades marcadas pelo colonialismo. Assim, no Brasil contemporâneo, ainda se observa a presença do "vazio fundamental" na figura do negro, resultante da desumanização causada pela exclusão da "zona do ser" e pela instrumentalização colonial e sacrificial, preenchido por estereótipos como criminalidade, hiperssexualização, paganismo e irracionalidade, vistos como fontes dos problemas que ameaçam a ordem social.

Quando o Estado — agente legítimo do uso da força e responsável pela manutenção da ordem social e garantia de direitos individuais — exerce sua face punitiva sobre a população negra e parda, enquanto adota uma postura paternalista em relação à população branca, fica evidente que a aplicação do contrato social no Brasil é insuficiente desde seu princípio. A concepção de integrante social protegido pelo contrato abrange apenas uma pequena parcela da população, enquanto a maioria é condenada à marginalização.

Na contemporaneidade ainda é presente a associação do indivíduo negro a toda mazela que ameace a ordem social dominada pelos brancos. O negro é associado à violência, à pouca escolaridade e ao crime. As periferias e favelas – ambientes majoritariamente negros – são encaradas pelo Estado como problemas a serem combatidos, ainda que as mazelas que os assolam estejam presentes em igual ou maior proporção nas “zonas brancas” desenvolvidas economicamente. Nessa lógica, a guerra às drogas e a luta contra o tráfico são, em essência, discursos justificadores da ação estatal de eliminação de corpos negros do meio social.

A concepção do sacrifício de sangue traz à tona uma razão de ser para o padrão de comportamento estatal. As periferias e favelas são a zona do não ser, o cenário ideal para que o sacrifício dos bodes-expiatórios ocorra para que a classe dominante seja apaziguada e desvie seu olhar das crises econômicas, sociais e políticas que ocorrem no país. O dito combate ao crime e à violência funciona como uma grande cortina de fumaça para que o apetite por corpos negros herdados do período colonialista seja atendido, servindo como uma solução a curto prazo para as questões sociais – como a falta de escolaridade - que nunca serão atendidas – por não serem questões brancas.


2. O Encarceramento do Bode Expiatório.


Ao fim do período colonial e início da era republicana, a sociedade brasileira enfrentou uma das grandes questões do mundo pós Revolução: negros livres. Não era condizente com os ideais da República as punições físicas, e a escravidão já não era uma possibilidade. A classe dominante global, portanto, teve de fundar uma nova forma de punir os corpos marginalizados que não agissem de acordo com a sua posição subalternizada.

Não se tratava de punir menos, mas de punir de forma mais eficaz. A nova estrutura do sistema punitivo desenvolveu-se em paralelo ao modelo econômico capitalista, que utilizava as instituições disciplinares para formar corpos obedientes e úteis à nova lógica do trabalho. O fundamento do direito de punir, que antes estava associado à vingança e à punição divina, passou a ser justificado, supostamente, pela defesa do Estado, pela racionalidade e pela humanização. Contudo, na prática, visava à manutenção do sistema econômico.

Evidente que, apesar da mudança do discurso da lógica da punição, os alvos permanecem os mesmos. A fundação de um novo sistema punitivo refletiu os novos anseios da classe dominante que há pouco havia conquistado sua estabilidade sociopolítica. Retirava-se de cena a nobreza e estava cheia de novas demandas à burguesia. Portanto, o novo sistema punitivo constitui-se como forma de resolver a dicotomia do negro na nova era – livre, mas ainda na zona do não ser. Por isso, o surgimento da prisão foi altamente eficaz em atender aos anseios da burguesia ao silenciar coercitivamente a população negra, impedindo seu levante contra o novo sistema econômico que a marginaliza exponencialmente, ao passo que impunha o quantitativo de sofrimento necessário à lógica do bode expiatório, da forma mais iluminista possível.

A existência da prisão como um mecanismo de controle punitivo está diretamente ligada ao funcionamento do sistema econômico. Ao receber o dito “delinquente”, a prisão age como instrumento de supressão da desobediência e estímulo à disciplina social, sendo útil ao sistema para garantir a ordem. Assim, a prisão não é uma simples criação do Estado burguês, mas um mecanismo essencial para a política, a economia e a ideologia de um sistema que descarta corpos marginalizados e protege privilégios.

No início do século XIX, o aumento da pobreza em decorrência da mecanização provocou o crescimento da população marginalizada e a elevação dos crimes patrimoniais. Nesse cenário, começou-se a argumentar que a pena privativa de liberdade não era mais suficiente, e o retorno dos castigos corporais foi impedido apenas pelo discurso humanitário iluminista. Foi nesse momento que a superlotação e a precarização dos presídios começaram a ser justificadas pela necessidade de manter o padrão de vida dos presos abaixo do das classes subalternas. A disciplinaridade do sistema punitivo reside na coerção que ele impõe, ao estabelecer que a punição para os marginalizados será severa, enquanto para a classe dominante será, muitas vezes, inexistente.

O recrudescimento das políticas criminais e a precarização das condições carcerárias comprovam que a imposição de sofrimento aos corpos marginalizados foi perpetuada pela classe dominante como uma suposta forma de solução dos problemas sociais. Fazer com que o condenado sofra o máximo possível não resolve os problemas sociais que o conduzem ao delito, mas satisfaz o apetite por sangue negro.

No auge do neoliberalismo, o surgimento do Estado penal evidenciou como a transição do Estado de bem-estar social para o Estado penal foi marcada por um aumento significativo no uso de políticas punitivas. O neoliberalismo, com seu foco na redução dos gastos sociais e na promoção da responsabilidade individual, resultou na criminalização da pobreza e no uso crescente do encarceramento como resposta para problemas sociais.

Dessa forma, o sistema prisional passou a funcionar como um instrumento econômico: em momentos de escassez de mão de obra, utilizava o trabalho dos presos como motor econômico; em cenários de crise e desemprego estrutural, funcionava como um depósito de corpos descartáveis para o sistema.

Portanto, o sistema carcerário não é cruel por negligência estatal. Não há erro substancial na demora dos julgamentos, na superlotação dos presídios, falta de saneamento básico ou alimentação digna dentro dos ambientes carcerários. A prisão, em termos gerais, é a forma mais legalizada de manter corpos marginalizados sob constante ameaça de sacrifício, em nome da satisfação da classe dominante e da proteção de seus privilégios.

A análise das estruturas de poder e da formação histórica brasileira revela a permanência de mecanismos de opressão que, sob diferentes roupagens, continuam a marginalizar os corpos negros. A adoção do contrato social, somada à lógica do sacrifício, consolidou um sistema punitivo que visa perpetuar a exclusão de determinadas parcelas da sociedade. Assim, a prisão e o encarceramento em massa refletem não apenas a manutenção de uma ordem social injusta, mas também a instrumentalização dos corpos marginalizados como bodes expiatórios, atendendo aos interesses da elite dominante. Em última instância, a perpetuação dessas dinâmicas punitivas evidencia o fracasso do projeto de igualdade e cidadania plena prometido pela modernidade.


3. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.


1. Chauí, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. Fundação Perseu Abramo. 2012

2. Queiroz, Marcos Lustosa. O Haiti é Aqui: ensaio sobre a formação social e cultural jurídica latino-americana (Brasil, Colômbia e Haiti, século XIX)

3. Souza, Taiguara Líbano Soares. A Era do Grande Encarceramento: Tortura e Superlotação Prisional no Rio de Janeiro. Editora Revan. 2018.

 
 
 

Posts recentes

Ver tudo
É O FIM DO CÔNJUGE HERDEIRO?

Reflexões sobre o critério de convocação no anteprojeto do Código Civil Liga Acadêmica de Direito de Família e Sucessões 1. INTRODUÇÃO O...

 
 
 

留言


bottom of page