É O FIM DO CÔNJUGE HERDEIRO?
- ogladio2024
- 6 de dez. de 2024
- 7 min de leitura
Reflexões sobre o critério de convocação no anteprojeto do Código Civil
Liga Acadêmica de Direito de Família e Sucessões
1. INTRODUÇÃO
O trabalho aqui proposto pretende fazer uma análise crítica do anteprojeto de reforma do Código Civil com foco no dispositivo 1.829 e na convocação do cônjuge e companheiro como herdeiro.
2. HERANÇA E MEAÇÃO
A herança e a meação são conceitos essenciais para o direito das sucessões, comumente confundidos, mas que operam em contextos diferentes. O primeiro, nos termos do art. 5º, inciso XXX, da Constituição Federal, é direito fundamental, proveniente do direito sucessório, isto é, do “complexo dos princípios segundo os quais se realiza a transmissão do patrimônio de alguém, que deixa de existir” (BEVILAQUA, 1938). Ao passo que, a meação, com a sua origem no direito de família, corresponde a metade dos bens compartilhados pelo casal e a sua existência está diretamente ligada ao regime de bens adotado.
A herança refere-se à transmissão do patrimônio total do falecido para seus herdeiros legais, também chamados legítimos, dispostos no artigo 1.829 do Código Civil, e também herdeiros testamentários. A lei não dá plena liberdade na transmissão hereditária. Quando o falecido deixar cônjuge, companheiro, descendentes ou ascendentes vivos, pelo menos metade da sua herança devera ser atribuída a tais herdeiros necessários (art. 1845 do Código Civil). É a chamada legítima que será dividida de acordo com a ordem de vocação hereditária estipulada na legislação civil. O restante dos bens pode ser transmitido por meio de testamento conforme autonomia do testador.
Em contrapartida, a meação é o direito do cônjuge ou companheiro sobre a metade dos bens comuns, independentemente de quem foi o responsável por sua aquisição, sendo dependente do regime de bens escolhido. Esse conceito está presente, por exemplo, no caso do regime legal, a comunhão parcial de bens, onde os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento ou por fato eventual pertencem aos dois. Trata-se de direito existente tanto durante a união estável quanto na dissolução dela, seja por divórcio ou falecimento. É importante fazer a distinção do que é meação do que será herança, posto que, em determinados casos, esse indivíduo pode assumir a função de herdeiro e meeiro simultaneamente, a depender da partilha.
3. O CRITÉRIO DE CONVOCAÇÃO NO CC/02
O Código Civil de 1916 trazia a ordem da sucessão legítima em seu art. 1.603. Os descendentes eram os primeiros na ordem de sucessão (inciso I), seguidos pelos ascendentes (inciso II), cônjuge sobrevivente (inciso III), colaterais (inciso IV) e, por fim, Estados, Distrito Federal ou a União (inciso V). A Lei no 8.049/90 alterou os “Estados” pelos “Municípios” neste último inciso.
Essa divisão, claramente, refletia uma sociedade cuja visão era pautada em uma ideia da mulher como “do lar”, responsável pelos afazeres domésticos e cuidados com os filhos. Nesse contexto, a ordem prevista nesse dispositivo legal, à época, causava injustiças na medida em que havia a possibilidade, muitas vezes, de se deixar as mulheres sem nenhum patrimônio após a morte de seus maridos dependendo do regime de bens adotado pelo casal. O marido era considerado o provedor da casa! O advento da mulher no mercado de trabalho, não raro acumulando o desempenho das tarefas domésticas, trouxe um desafio adicional para a mulher. A busca por igualdade de salários, de oportunidades e de respeito passou a ser uma pauta que se mantém até os dias atuais.
Nesse contexto, o Código Civil de 2002 reconheceu a importância de proteção ao cônjuge, em particular da mulher, na sucessão e alterou a ordem sucessória de maneira significativa, conforme estabelece o artigo 1.829 do CC:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este
com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens
(art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não
houver deixado bens particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
IV - aos colaterais.
A primeira mudança foi colocação do cônjuge como herdeiro em concorrência com os descendentes, dependendo do regime de bens. Dessa forma, a redação do artigo 1.829, I, é um pouco confusa à primeira leitura, mas indica que o cônjuge herda concorrentemente com os descendentes caso seu regime de bens seja separação convencional, participação nos aquestos e na comunhão parcial de bens somente sobre os bens particulares – o que reflete o entendimento do Superior Tribunal de Justiça e se reflete no enunciado 270 da III Jornada de Direito Civil.
O legislador privilegiou ainda o cônjuge, indicando no art. 1.829, II, que este herda juntamente com os ascendentes independentemente do regime de bens. Por fim, não havendo descendentes, nem ascendentes, o cônjuge sobrevivente herdará sozinho. Ana Luiza Maia Nevares costuma destacar que o modus operandi atual do direito sucessório brasileiro criou a figura do “super cônjuge” ao incluí-lo com herdeiro junto com outras classes (descendentes e ascendentes).
Insta pontuar ainda que na comunhão total de bens e na comunhão parcial de bens sem bens particulares, o cônjuge não será herdeiro quando houver descendentes, mas será meeiro de 50% de todos os bens auferidos durante o casamento. Nesse contexto de proteção, destaca-se também o direito real de habitação que permite ao cônjuge residir gratuitamente em imóvel destinado à residência da família, desde que esse bem seja o único daquela natureza a inventariar (art. 1831/CC).
4. O CRITÉRIO DE CONVOCAÇÃO NO ANTEPROJETO
Ao analisar o anteprojeto, percebe-se várias mudanças no direito sucessório, principalmente, na ordem de convocação para herdar, conforme exposto abaixo:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes;
II - aos ascendentes;
III - ao cônjuge ou ao convivente sobrevivente;
IV - aos colaterais até o quarto grau.
Em um primeiro momento, observa-se uma simplificação do artigo que assemelha-se a ordem de convocação do Código de 1916. Contudo, simplificação não quer dizer que a mudança foi positiva, uma vez que, com esse anteprojeto, o cônjuge ficará prejudicado em comparação com o atual texto. Na prática, se a proposta for aprovada, o cônjuge só será herdeiro se o falecido não tiver descendentes e nem ascendentes. Ou seja, o cônjuge foi rebaixado para a terceira classe para herdar. Não havendo, assim, concorrência sucessória.
Vale ressaltar, que o novo projeto também estabelece que o cônjuge e o companheiro deixam de ser herdeiros necessários, deixando o rol restritivo para descendentes e ascendentes: “Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes e os ascendentes”.
Em síntese, as justificativas para essa enorme mudança são as mais variadas, desde a ampliação da autonomia privada até a entrada da mulher no mercado de trabalho. Assim como, também, uma simplificação de um dispositivo que causava muita confusão. A entrada da mulher no mercado de trabalho, contudo, nada justifica o fato do cônjuge ser rebaixado de maneira tão brusca na ordem de convocação. Cita-se, ainda, que apesar de mais escolarizadas, mulheres têm menor participação no mercado de trabalho e recebem 21% menos que homens, conforme pesquisa do IBGE, em 2022. Nesse contexto, sem uma equiparação salarial, fundamentar uma mudança legislativa tão importante em uma mudança social que não apresenta o suposto resultado, parece, no mínimo, radical.
Por fim, nota-se dentre as justificativas, que essas mudanças estariam atendendo às demandas da sociedade civil. No entanto, não há nenhuma base para essa afirmativa, nenhuma pesquisa. Enfatiza-se, portanto, que carece de fundamento a mudança proposta pelo anteprojeto. Além disso, o legislador, ao estabelecer rol de herdeiros necessários, está assumindo quais são as pessoas mais próximas de dependência, mas desconsidera que se trata de uma pessoa que o falecido escolheu compor família, escolheu dividir sua vida. Por que, então, o cônjuge não pode ser equiparado ao descendente e ao ascendente?
Volta-se à pergunta, uma mudança tão grande e que irá afetar a vida de todos os brasileiros não merece ser elaborada com um pouco mais de cautela?
5. CONCLUSÃO
Diante do exposto, depreende-se que, na legislação civil brasileira, no âmbito do direito sucessório, a colocação da figura do cônjuge passou por diversas alterações, espelhando na lei pressupostos e entendimentos que refletem as questões sociais de cada período, com ênfase nos empecilhos ligados aos papeis de gênero. No entanto, como tal codificação abarca as mais diversas realidades sociais, mudanças que buscam uma suposta simplificação, se feitas sem a devida ponderação da multiplicidade da situação familiar dos brasileiros, como se vislumbra no anteprojeto, podem gerar prejuízos a um grupo que voltará a ser desprestigiado. Por outro lado, é pequeno o número de pessoas que realizam o planejamento sucessório no Brasil, de forma que boa parte da população desconhece as regras de sucessão. Nesse sentido, aventa-se a hipótese de que a proteção excessiva pensada pelo legislador tem seu lastro em toda essa situação complexa e multifacetada em que está inserido cônjuge, em particular quando este for representado pelo sexo feminino. Entretanto, há quem pense de forma diversa, fato que motivou a mudança desse artigo na proposta de reforma do Código Civil.
6. Bibliografia
BEVILAQUA, Clovis. Direito das sucessões. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1938. 440 p.
BRASIL. Código Civil de 1916. Decreto nº 3.725, de 1º de janeiro de 1916. Disponível em: https://www.planalto.gov.br. Acesso em: 3 dez. 2024.
BRASIL. Lei nº 8.049, de 25 de maio de 1990. Dispõe sobre alteração no Código Civil e outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br. Acesso em: 3 dez. 2024.
BRASIL. Código Civil de 2002. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br. Acesso em: 3 dez. 2024.
COMISSÃO DE JURISTAS RESPONSÁVEL PELA REVISÃO E ATUALIZAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL. Relatório Final dos trabalhos da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código. CJCODCIVIL. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/atividade/comissoes/comissao/2630/. Acesso em: 5 dez. 2024.
COSTA, Marianna Lobo Santos. O direito sucessório do cônjuge na reforma do Código Civil sob perspectiva de gênero. IBDFAM. Publicado em: 31 jul. 2024. Disponível em: https://www.ibdfam.org.br. Acesso em: 5 dez. 2024.
IBGE. Estatísticas de Gênero: Indicadores sociais das mulheres no Brasil. Disponível em: https://www.ibge.gov.br. Acesso em: 5 dez. 2024.
NEVARES, Ana Luiza Maia. Do “super” cônjuge ao “mini” cônjuge: a sucessão do cônjuge e do companheiro no Anteprojeto do Código Civil. IBDFAM. Publicado em: 29 abr. 2024. Disponível em: https://www.ibdfam.org.br. Acesso em: 5 dez. 2024.
SANTOS, Igor Ladeira dos. Análise crítica sobre o artigo 1.829 do Código Civil Brasileiro e suas diversas interpretações. JusBrasil. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/analise-critica-sobre-o-artigo-1829-do-codigo-civil-brasileiro-e-suas-diversas-interpretacoes/302187403. Acesso em: 5 dez. 2024.
SOUZA, Gabriel Grigoletto Martins de; ARAÚJO, Marianna Santos. Alteração do Código Civil: a posição do cônjuge na sucessão patrimonial. JOTA, 2024. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/alteracao-do-codigo-civil-a-posicao-do-conjuge-na-sucessao-patrimonial. Acesso em: 5 dez. 2024.
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