“Dos filhos deste solo és mãe gentil”: o Hino Nacional Brasileiro e a familiarização da nação
- ogladio2024
- 14 de nov. de 2024
- 18 min de leitura
Atualizado: 23 de nov. de 2024
Por Eliene Rodrigues da Silva Pinto
Resumo
Pretende-se, através deste artigo, explorar os sentidos que a letra do Hino Nacional Brasileiro adquire em relação a um fenômeno descrito por Wendy Brown como um dos motivos em razão dos quais o neoliberalismo se encontra em ruínas: o ato de ver a nação como uma família. Para isso, parte-se de um cenário de apropriações e reivindicações contemporâneas das mensagens de determinados trechos, e seus usos, na qualidade de slogans, em prol da fundamentação de medidas antidemocráticas, cujo exemplo mais realçado é a política de segurança nacional.
Palavras-chave: Neoliberalismo – Brasil – Wendy Brown – Hino nacional
Abstract
The aim of this article is to explore the meanings that the lyrics of the Brazilian National Anthem acquire in relation to a phenomenon described by Wendy Brown as one of the reasons why neoliberalism is in ruins: the act of seeing the nation as a family. To do this, I start from a scenario of contemporary appropriations and demands for the messages of certain passages, and their use as slogans to support anti-democratic measures. The most prominent example of which is the national security policy.
Keywords: Neoliberalism – Brazil – Wendy Brown – National Anthem
1. Introdução
Este artigo se divide em duas partes. A primeira pretende apontar, por meio de uma estratégia de pesquisa predominantemente bibliográfica, os principais elementos que norteiam o conceito de “familiarização da nação”, que também é um movimento de privatização (BROWN, 2019, p. 142), distorcendo a dicotomia aparentemente inabalável entre público e privado e reiterando as tendências antidemocráticas que se apresentam no século XXI. As recorrentes analogias ao ambiente doméstico configuram uma extensão da esfera pessoal que atribui ao neoliberalismo um teor moral, elemento estranho ao que se pensava ser sua agenda tradicional. “Se pensava” porque um dos símbolos da ideologia política neoliberal, Margaret Thatcher, já assinalava a importância da família (2019, p. 141), de modo que alguns estudiosos preferem pensar o neoliberalismo como um fenômeno somente existente enquanto pautado em uma aliança necessária e perene com o conservadorismo. Andrew Heywood, por exemplo, refere-se ao neoliberalismo de Thatcher e Reagan como “parte de um projeto ideológico mais amplo que visava unir a economia do laissez-faire a uma filosofia social essencialmente conservadora” (2010, p. 63). Essa relação é melhor explorada na segunda parte do artigo.
Nesse primeiro momento, também são fornecidas algumas reflexões acerca da origem do fenômeno, assentada no conceito de “soberania política”, e de suas consequências, das quais o nacionalismo, matéria do amuralhamento, é o foco. Além disso, a exemplificação, isto é, a seleção de discursos nos quais os pontos discutidos podem ser verificados, marca forte presença, à medida que acredita-se que a abstração contida nos conceitos não realiza a exposição completa de um fenômeno.
A segunda parte, que adentra o tema do artigo propriamente dito, inicia-se com um breve histórico do hino nacional, em seu sentido mais amplo, objetivando introduzir a análise das finalidades que esse elemento adquiriu e as complexidades inerentes a ele. Logo em seguida, o contexto da construção da letra do Hino Nacional Brasileiro é abordado, descrevendo o caminho percorrido até a oficialização da versão de Joaquim Osório Duque Estrada. Esse trabalho inicial, essencialmente bibliográfico, serve à identificação dos limites da análise que se propõe. Para realizá-la, utiliza-se, naturalmente, do método documental, à medida que se parte da interpretação de trechos do Hino Nacional Brasileiro, incrementada com a retomada dos conceitos de Wendy Brown e da bibliografia complementar. Esse último passo, que, na verdade, serve ao primeiro objetivo, pretende responder e, respondendo, problematizar as seguintes perguntas:
I: A letra do Hino Nacional Brasileiro dialoga com a análise de Wendy Brown?
II: Se dialoga, em que medida esta o faz?
2. A análise de Wendy Brown
A lei que instituiu o Estatuto da Migração (Lei 13.445/2017), substituindo o Estatuto do Estrangeiro, em vigor desde 1980, tinha como um dos principais pontos estabelecer a igualdade formal entre brasileiros e migrantes, garantindo, por exemplo, o “acesso aos serviços públicos de saúde, de assistência e de Previdência Social” (CALGARO, 2016). Em dezembro de 2016, durante votação do projeto de lei, o então deputado federal Jair Messias Bolsonaro fez uma declaração cuja transcrição fornece-se abaixo.
"Seu presidente, um minuto. Quero fazer um apelo aos meus colegas. Eu tenho certeza que vocês não sabem “o” que estão votando. Estão escancarado as portas do Brasil pra “tudo” quanto é tipo de gente. A Angela Merkel, atrás do quarto mandato agora, acabou de endurecer a sua legislação sobre imigrantes. Porque acabou de ser assassinada uma menina, depois de ser estrupada, que comoveu a Alemanha. O comportamento deles — a sua cultura é completamente diferente da nossa. Nós não podemos, nesse momento de crise mundial, escancarar as portas do Brasil p’ra “tudo” quanto é tipo de gente aqui dentro. Isso vai virar, me desculpe o termo, a casa da mãe Joana. Esse país é nosso. Não é de todo mundo. Não podemos fazer isso. Até mesmo o Trump, com as eleições em cima da Flórida... [incompreensível] ... com cubanos justamente em função disso. Nós não podemos escancarar as portas do Brasil para o mundo. Nós não comportamos esse tipo de gente aqui dentro sem controle. Um apelo que eu faço, presidente, é p’ra votar contra isso aí. Obrigado pela oportunidade (BOLSONARO, Jair Messias. 06/12/2016).
No livro “As ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente”, Wendy Brown interpreta discursos como os de Marine Le Pen e Donald Trump como pertencentes à linha da reconfiguração “da nação como família e empresa privada”, tão característica, segundo ela, da agenda neoliberal (2019, p. 141). Tal como Bolsonaro na declaração de dezembro de 2016, Trump menciona uma porta quando, em um discurso de campanha, pinta uma imagem dilacerada dos Estados Unidos, que, de acordo com ele, se deveria às suas fronteiras inseguras. A porta de Trump, entretanto, é “’magnífica, grandiosa e linda’” e pela qual apenas os imigrantes legais poderiam passar para “visitar ou juntar-se à ‘nossa família’” (2019, p. 142). Declararia, ainda, em uma analogia posterior, que o tal muro proposto era como “os ‘muros, cercas e portões’ que os políticos abastados constroem em torno de suas casas, ‘não porque eles odeiam as pessoas do lado de fora, mas porque eles amam as do lado de dentro’”.
“Nós somos os donos de nosso país”. A candidata também fez menção a uma porta, da qual “nós devemos ter as chaves” (2019, p. 143) e se referiu a uma casa: “a casa da França”. Caberia aos portadores dessas chaves (“nós”) decidir entre deixar a porta entreaberta ou fechá-la. Na declaração de Jair Bolsonaro, também é possível identificar esse teor, à medida que o insistência do parlamentar no escancaramento “das portas do Brasil” parece sugerir que, se seu “apelo” fosse atendido, haveria a garantia, ao menos momentânea, de que as tais portas permaneceriam fechadas, e isso seria motivo de tranquilidade, tal como um portão trancado à noite. Além disso, o uso de expressões como “’tudo’ quanto é tipo de gente” e “o comportamento deles” exterioriza a clara concepção de uma relação de “nós e eles” — ou, mais especialmente, de “nós ou eles”. Ou seja, uma relação de diferenciação e necessária escolha, exclusão, sobreposição. O país parece ser visto como uma casa, portadora de um muro e uma porta que garantem o acesso restrito. Os brasileiros natos são vistos como moradores legítimos e os imigrantes, como estranhos. Potencialmente, como visitantes que pleiteam uma visita cuja permissão precisa ser ponderada; mas, em primeiro lugar, como estranhos, já que, quando o parlamentar fala na diferença dos comportamentos e culturas, há uma sugestão do imprevisível, da desconfiança em relação a suas atitudes. E que, se o cenário é a dúvida, é melhor abdicar da postura anfitriã e garantir o bem-estar dos cidadãos: “nós não comportamos esse tipo de gente aqui dentro sem controle” (BOLSONARO, 06/12/2016). Há aqui, novamente, uma preferência pelos “residentes”.
A nação, segundo Melinda Cooper (apud Wendy Brown), enquanto concebida como unidade privada e familiar, na extensão da esfera pessoal e protegida, “subverte a democracia por meio de valores morais antidemocráticos, ao invés de valores capitais antidemocráticos” (2019, p. 141). Trata-se de outra forma de privatização, para além da privatização econômica neoliberal, que, por sua vez e por si só, já legitima a desigualdade “a exclusão, a apropriação privada dos comuns, a plutocracia e um imaginário democrático profundamente esmaecido”. A campanha familiar é, hoje, de acordo com Wendy Brown, especialmente importante “na geração psíquica e política da formação de uma cultura política liberal autoritária”. À medida que prima-se pela proteção da esfera pessoal, há um descarte dos princípios da democracia, rejeitando “uma ordem pública, plural, secular e democrática em nome de uma ordem privada, homogênea e familiar” (2019, p. 144).
As coordenadas da religião e da família — hierarquia, exclusão, homogeneidade, fé, lealdade e autoridade — ganham legitimidade como valores públicos e moldam a cultura pública conforme se juntam ao mercado para deslocar a democracia. Quando esse modelo duplo de privatização se estende à própria nação, a nação é traduzida alternadamente como um negócio competitivo que precisa fazer melhores acordos e como uma casa inadequadamente protegida, sitiada por estrangeiros que não pertencem ao lugar ou que são mal-intencionados (2019, p. 142).
Só quem se encaixa a um determinado molde é considerado bem-vindo nessa lógica, ponto onde se torna suficientemente claro que o neoliberalismo não consiste em um retorno a Adam Smith, ao Estado mínimo do liberalismo clássico. Não por isso, entretanto, é plausível empreender um paralelo entre o neoliberalismo e o fascismo. Em primeiro lugar, o neoliberalismo não é um fenômeno homogêneo, de características inflexíveis desde a origem. Pierre Dardot e Christian Laval veem em Trump um marco da história do neoliberalismo mundial (2019), ao ponto de falarem em uma nova fase. Reconhecem, entretanto, amparados nos estudos de Robert Paxton, que o neoliberalismo preserva inúmeros aspectos que o diferenciam do fascismo, evento único na História que, para além de ingredientes como o hiper nacionalismo e o desprezo ao estrangeiro, impunha o unipartidarismo e estabelecia o corporativismo profissional, dentre outras coisas3. Se há uma ideologia política cujas características parecem convergir com o neoliberalismo, essa é o conservadorismo.
O conceito de soberania política é essencial para compreender a origem do fenômeno da familiarização da nação. Antes desse, está o conceito de nómos, explorado por Carl Schmitt, que “significa tanto ‘dividir’ quanto ‘pasturar’. De modo que nómos ‘es la forma inmediata en la que se hace visible, en cuanto al espacio, la ordenación política y social de un pueblo’” (BROWN; apud Souza e Verbicaro, 2023, p. 289). Dessa maneira, a soberania política precisaria de um “substrato concreto para a sua fundação, que está justamente na divisão territorial” e cuja importância, na equiparação da nação à família, é bastante realçada. Mais essencialmente, a soberania política ocupa o lugar que Deus representa na maior parte dos casos narrados na Bíblia, ou seja, um papel paternal ou julgador. Nesse contexto, “a relação entre Estado-nação e os indivíduos ganha contornos familiares, no qual o primeiro possui o papel de cuidar e, caso fosse necessário, punir o segundo” (2023, idem), de modo que, para além de uma paródia da estrutura familiar, esse fenômeno pode se encontrar sob um amparo teológico.
Wendy Brown aponta algumas consequências da privatização e familiarização da nação. Em primeiro lugar, desenvolve-se um senso nacionalista que diverge do plano inicial do neoliberalismo. A exigência de muros, proteções por essa forma de privatização convoca o estatismo, o policiamento e o autoritarismo. A autora se refere ao fenômeno do amuralha mento, justificado com teses como a do combate ao terrorismo (SOUZA, VERBICARO; 2023, p. 288). “Muros e portões de casas, é claro, são os símbolos visuais mais fortes que demarcam o privado do público, o protegido do aberto, o familiar do estranho, a propriedade do comum” (BROWN, 2019, p. 143). Eis o paradoxo: a extensão da esfera privada também exige uma maior proteção estatal, seja através da lei ou das forças de segurança.
3. Em que medida a letra do Hino Nacional Brasileiro dialoga com a referida análise?
O primeiro hino de que se tem registro é “Wilhelmus”, da Holanda, “composto entre 1568 e 1572” (PÁDUA, 2023, p. 12), muito embora o título seja popularmente atribuído a “God save the King/Queen”, do Reino Unido, recorrentemente entoado em eventos patrióticos. As letras de ambos homenageavam indivíduos — o primeiro, Willem van Oranje, um mártir da Guerra dos Oitenta Anos; o segundo, ao que tudo indica, teve como primeiro destinatário o rei George II, “o monarca na época da primeira execução para a realeza, que aconteceu em setembro de 1745” (PÁDUA, 2023, p. 16). Já o hino francês, “La Marseillaise”, escrito, segundo José Murilo de Carvalho (apud Pádua), em 1792, era, até o final do século XIX, quando foi consagrado como Hino Nacional Francês, “o hino dos revolucionários de todos os países que buscavam se livrar de suas monarquias” (PÁDUA, 2023, p. 17), inclusive do Brasil.
No artigo 13, parágrafo primeiro, da Constituição Federal Brasileira de 1988, o hino é classificado como um dos símbolos da República Federativa do Brasil, mas, ao menos sua melodia é de antes do período republicano. Não há, segundo Avelino Romero Simões Pereira (1995, p. 22), muitas dúvidas em relação a ela, em virtude da qual Francisco Manuel da Silva foi heroicizado. Observa-se, de acordo com o artigo de Pereira, um consenso entre a historiografia nesse quesito: a composição ocorreu “por ocasião da Abdicação de Pedro I, a 7 de abril de 1831”. Por isso a música, por essa época, era conhecida como Hino ao 7 de abril. A letra que originalmente a acompanhava, entretanto, sofreu inúmeras modificações ao longo do tempo. A primeira versão foi publicada em 1833 no Jornal Sete de Abril e pertencia ao desembargador Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, apresentando, segundo análise de Avelino Romero Simões Pereira, elementos como o antilusitanismo, a fidelidade monárquica, a defesa da soberania popular (“o ideal republicano, entendido aqui não por oposição à monarquia”) e a unidade nacional (1995, p. 23-24). Uma nova letra mantinha este último elemento, mas apresentava uma idealização bajuladora de Pedro II. “Vemos em Pedro Segundo/ A aventura do Brasil”, dizia (1995, p. 26). Tantas alusões ao regime monárquico traziam, diante dos novos tempos, uma pergunta: como tal hino poderia ser mantido no período republicano?
Concursos foram elaborados e novas composições, avaliadas, com o objetivo de instituir uma “’La Marseillaise’ brasileira” (PÁDUA, 2023, p. 47), mas, ao final, optou-se pela manutenção da sinfonia, cujo motivo foi atribuído à “vontade da nação”. Eis um trecho de um livro de 1908 de autoria de Guilherme de Melo (PEREIRA, 1995, p. 31): (...) a nação brasileira, por ocasião da proclamação da República, não quisera se desfazer dele e o proclamara Hino Nacional Brasileiro pelo decreto nº 171, de 20 de janeiro de 1890, não só porque ele se identificara com ela por ocasião da guerra do Paraguai, como também porque ele se tornara um símbolo evocativo das nossas tradições (...)
Reconhecida a neutralidade da música, o acessório que deveria ser suprimido do hino para atribuir a ele um caráter republicano só poderia ser, portanto, a letra. A desvinculação da música da letra fez com que apenas esta fosse oficializada pelo decreto a que se refere o trecho de Guilherme de Melo, exigindo, portanto, que a nova letra, fosse qual fosse, deveria se adequar à sinfonia de Franscisco Manuel da Silva. A letra de Joaquim Osório Duque Estrada, de 1909 (PÁDUA, 2023, p. 71), “após longos debates na Câmara Federal e controvérsias na imprensa, só foi oficializada em 1922, às pressas, aos 6 de setembro, vésperas das comemorações do centenário da independência” (PEREIRA, 1995, p. 34). Várias alterações, nesse sentido, contribuíram para a consagração da letra atual, dentre às quais estão concursos para a escolha de uma nova letra e modificações não oficiais. Isso porque, de acordo com Ayres de Andrade (apud Pereira), “em Francisco Manuel da Silva e seu tempo, era comum apor-se nova letra a uma melodia já conhecida e consagrada” (1995, p. 25).
Dessa forma, deve-se reconhecer preliminarmente que: (I) a letra do Hino Nacional Brasileiro teve várias versões, o que espelha a variedade dos contextos históricos pelos quais passou; (II) a despeito das tendências das épocas históricas, há persistências de outros contextos; (III) a despeito das tendências das épocas históricas, o Hino Nacional Brasileiro, enquanto produto de uma ação artística e criativa, pode acolher significados particulares, assentados tanto na individualidade do autor quanto na conveniência métrica/estética da música; e (IV) a versão atual da letra do Hino Nacional Brasileiro não foi pensada com base na agenda neoliberal.
Acerca deste último ponto, contudo, é possível fazer uma crítica. De fato, a letra final, criada em 1909, não era capaz de prever, isto é, espelhar aspectos com sede em, no mínimo, sete décadas depois. Isso trabalhando com a tese de que é possível apontar marcos, ocasiões onde determinados fenômenos têm início, sem levar em conta o seu caráter inacabado e as mutações históricas às quais estes estão submetidos. Isso trabalhando com a tese, nesse sentido, de que “a grande virada” do antigo sistema para o neoliberalismo ocorreu na década de 1980 (DARDOT, LAVAL; 2016, p. 190). A crítica reside no fato de que, na análise de Wendy Brown e na interpretação do comentário de Jair Bolsonaro feita à luz dela, é possível identificar alguns elementos do conservadorismo. A defesa da tradição (a), o desejo por segurança (b), que pode ser oferecida pela propriedade (c) caracterizam a ideologia conservadora da imperfeição humana, que, em linhas gerais, afirma que as pessoas, que temem o isolamento e a instabilidade, “são atraídas para o que é confiável e familiar e, acima de tudo, buscam a sensação de segurança de conhecer ‘o seu lugar’” (HEYWOOD, 2010, p. 80). Uma passagem em que o ponto (a) se encontra é no aparente temor contido no comentário de Bolsonaro frente à possibilidade de ter de defrontar com o “comportamento” e a “cultura” “deles”. O ponto (b) tem como principal símbolo o muro, enquanto a propriedade, objeto do item (c), é, notadamente, evocada em todas as analogias a casas, ao ato de privar, verbo que pode ser extraído da raíz latina da palavra “privado”. Soma-se a isso o teor da declaração de uma das principais representantes do neoliberalismo — ao menos, o de sua primeira fase —, Margaret Thatcher: “há apenas indivíduos e suas famílias” (BROWN, 2019, p. 141).
O conservadorismo e o neoliberalismo, nesse sentido, teriam alguns pontos de convergência, de modo que determinados trechos da letra do Hino Nacional Brasileiro, por mais que não tivessem, na ocasião de sua concepção, tal intenção, simplesmente em virtude de seu autor não ter a capacidade de conhecer o inexistente, vieram de encontro à vertente neoliberal, ou, no mínimo, a uma de suas expressões. Outra reflexão que se pode tirar da conclusão (IV) é que, tendo em vista que a letra do Hino Nacional Brasileiro não corresponde aos pilares do neoliberalismo, mais particularmente ao fenômeno da reconfiguração da nação como família, que é do que este artigo trata, sua análise só pode se dar admitindo o uso da letra como um ato de apropriação. A análise que se segue trabalha com base na possibilidade de reivindicação da mensagem da letra por segmentos que se autoproclamam neoliberais ou cujos comportamentos fazem com que sejam classificados como tais; de afirmação do Hino Nacional Brasileiro por esses agentes como um elemento de mensagem atemporal ou cuja mensagem estava destinada a fazer sentido no tempo presente. Trabalha-se, portanto, com a possibilidade de contribuição de uma herança positivista que já delineava a historiografia a que Avelino Romero Simões Pereira faz crítica (1995, p. 21-22).
As palavras “filho” e “filhos”, sua variação, aparecem três vezes na letra de Osório Duque-Estrada. Marcam mais presença, por exemplo, do que “povo”, cuja única aparição é no início da Parte I. Das três vezes em que aparecem, duas configuram repetição frasal e são acompanhadas da palavra “mãe”, e não parece que é ao território que esta última se refere. Em “dos filhos deste solo és mãe gentil”, pode-se tirar três conclusões silogístico interpretativas: (I) os filhos são do solo; (II) a mãe não é o solo; e (III) o solo é o pai. O “ó Pátria amada” que ocupa uma posição imediatamente anterior ao trecho revela que a metáfora da maternidade refere-se à pátria, palavra que, na passagem, exerce uma função de vocativo. O adjetivo que se atribui à “mãe” é “gentil”, de onde pode-se tirar, guardadas as devidas proporções, a atribuição conservadora de uma postura passiva à figura materna, a quem ninguém deve temer, mas amar. Além disso e ainda que, ao longo da letra, território (suporte físico) e pátria (suporte cultural, simbólico, afetivo) se confundam, a “mãe” é predominantemente representada como alguém/algo que une a todos por uma força abstrata, que ultrapassa o ato de frequentar determinado lugar (no caso, o território brasileiro). E é por essa força que os “filhos” desafiam “o nosso peito”.
Em “Nas ruínas do neoliberalismo”, Wendy Brown afirma que, na familiarização da nação, costuma-se ver o presidente como pater familias, não o território ou a pátria com tal (2019, p. 143). A nação corresponde à propriedade privada e familiar, de modo que não ocorre uma personificação de entes não-vivos em benefício da releitura de um núcleo familiar. Assim, o governante adquire um caráter paternalista, o de quem sempre sabe o que é melhor para os demais. Novamente, verifica-se a apropriação de uma característica do conservadorismo, e cabe ao presidente, não aos “filhos”, proteger a nação. Acerca do conservadorismo, comenta Andrew Heywood: “a base do paternalismo é que a sabedoria e a experiência são distribuídas na sociedade de forma desigual; aqueles em posição de autoridade ‘sabem mais’” (2010, p. 91).
O eventual uso do trecho “verás que um filho teu não foge à luta”, contudo, pode tanto querer fazer referência à capacidade direta de mudança dos cidadãos quando a sua forma indireta, qual seja a via eleitoral. Na divulgação de um evento organizado para o dia 7 de setembro de 2021, na cidade de Ecoporanga, Espírito Santo, apoiadores do então presidente
Jair Messias Bolsonaro (2019-2022) utilizaram a frase4. Junto à imagem do chefe do Executivo, as cores da bandeira nacional e o dito “pela liberdade, democracia e família”, a imagem de divulgação das manifestações colocava o trecho do Hino Nacional Brasileiro em destaque. O ato, em face do slogan, pode dar margem a muitas interpretações, dentre às quais estão a intenção de antecipação da promoção da candidatura de Bolsonaro à Presidência da República, ou seja, a sua manutenção no poder. Afinal, se é legado a um governante proteger a nação, tal como um pai faria a sua família, é lógico que se defenda a sua permanência na função.
Se a noção de familiarização da nação foi concebida como necessariamente vinculada à política da segurança nacional, deve-se insistir no trecho “dos filhos deste solo és mãe gentil”. A passagem sugere que a pátria é apenas mãe dos filhos do solo, ou seja, dos nascidos em território brasileiro, de maneira que sua “gentileza” não se estende aos demais. Em “entre outras mil/ És tu, Brasil” e na sequência na qual se declara, em citação a “A Canção de Exílio”, de Gonçalves Dias (PÁDUA, 2023, p. 71), haver uma superioridade dos campos e bosques brasileiros, evidencia-se um teor bajulador, o “nós somos melhores que eles, simplesmente pelo fato de nós sermos nós”. O narcisismo (“mania de estimar só a si e ao que é seu”5) tem raíz no não exercício da alteridade. É frequentemente confundido com o egoísmo (“amor-próprio excessivo, que leva o indivíduo a olhar só para seus interesses, com desprezo dos alheios”6), que configura uma fase “avançada” do narcisismo. Nela, se tem uma maior consciência do outro; é onde a possibilidade de ouvir, incluir e acolher aparece e opta se pelas ações em negativo. Uma pessoa x1 acredita que a sua versão de y, y1, é superior a y2, que é a versão de y de x2 (narcisismo); e x1, por ter internalizado que y1 apenas a ele pertencia, não concorda que x2 também usufrua de y1 (egoísmo). Neste artigo, o egoísmo reside na ênfase dada aos pronomes possessivos nos discursos de Bolsonaro, Trump e Le Pen (ver seção 2). É o fenômeno atomizado do que, no pensamento de Wendy Brown, denomina se nacionalismo autoritário (SOUZA, VERBICARO; 2023, p. 276).
Não é supérfluo, por fim, comentar a importância que, no contexto neoliberal, se costuma dar à concorrência (DARDOT, LAVAL, 2016, p. 382-383), o que se consolida tanto no âmbito micro (comparação entre indivíduos) quanto no âmbito macro (comparação entre entidades, tais como países). Nesse sentido, a constante busca não pelo aprimoramento, mas pela superação do outro, estabelece uma relação competitiva que incrementa o ato de ver o outro como um adversário, um ente hostil, indesejado, que, na melhor das hipóteses, é barrado na porta de “nossa casa”.
4. Considerações finais
Diante do exposto, importa dizer, em primeiro lugar, que a análise de fragmentos de um documento brasileiro historicamente localizado há mais de um século à luz de uma teoria contemporânea de autoria estadunidense é múltipla e anacronicamente perigosa. Por isso, o reconhecimento das limitações da empreitada adquirem um teor urgente, e a única forma de evitar tamanhos equívocos seria encarar os trechos do Hino Nacional Brasileiro enquanto objetos de apropriação, de reivindicação de segmentos contemporâneos, o que não exclui, antes inclui, um processo de ressignificação. É apenas partindo dessa observação que se pode falar na relação de trechos da letra do Hino Nacional Brasileiro com o conceito de “familiarização da nação” de Wendy Brown.
Portanto, à pergunta “a letra do Hino Nacional Brasileiro dialoga com a análise de Wendy Brown?”, responde-se: não, se com “dialogar”, se pretenda dizer “reproduzir o conteúdo”. Sim, se com “dialogar”, se pretenda dizer “abrigar um eventual paralelo”, que reside na elevação dos fragmentos a slogans, os quais, na intenção estética de sintetizar o pensamento de um indivíduo ou movimento, manipulam recursos linguísticos para fazer com que um significado caiba na mensagem. Quando esses recursos linguísticos se aliam a recursos simbólicos, afetivos, obtém-se uma maior credibilidade. E, na medida que se atribui ao texto um teor determinista, como um comando ou receita, que deve ser seguida sem a mínima contestação, engessa-se os comportamentos, conserva-se. Talvez seja essa a principal semelhança entre o uso dos trechos do Hino Nacional Brasileiro e a análise de Wendy Brown, que sublinha que neoliberalismo e conservadorismo estão mais próximos do que distantes.
5. Referências bibliográficas
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