Justiça é curada da cegueira porém perde os braços, no século XXI
- ogladio2024
- 3 de out. de 2024
- 4 min de leitura
Por Lucas Matias Fontão
Que a justiça é cega todos sabemos, mas espera-se que ela seja altiva - pelo menos. O que realiza-se na recente história política brasileira é um sistema judiciário, com enfoque aqui nas cortes eleitorais e de instâncias superiores, que vira e mexe espia por de baixo de sua viseira e se abstem de impor-se quando necessário.
A sociedade brasileira acompanha nesse momento a fervorosa eleição municipal de São Paulo capital. Recentemente, foi repercutido exaustivamente mais um evento de escalada da violência do debate público do país. O debate realizado na noite do 23 de setembro, pelo grupo Flow, terminou com a expulsão do candidato Pablo Marçal, que foi sucedida de uma confusão entre membros da equipe desse candidato e do Prefeito em busca de reeleição, Ricardo Nunes. A eleição na capital paulista como um todo, e esse evento em si, cristalizam o ápice do populismo eleitoreiro barato, e da ruína do ambiente político brasileiro. Porém, antes de falar do que isso significa para o futuro é bom relembrar como cavamos esta cova.
Como tudo no mundo capitalista, não existe oferta se não houver demanda. Estamos há uma década tentando explicar esse evento de radicalização do debate público, e do surgimento dessa nova direita, e acabamos por gerar as mais diversas explicações. A culpa ora é das redes sociais, hora é dos líderes radicais de direita, ora é dos governos do PT, sobra até pro jornalismo, para a comunidade acadêmica e a elite cultural. Todos esses fatores explicam sim diversos aspectos da situação atual do país, mas a realidade é: o povo brasileiro mudou, e não estamos sozinhos. O evento da extremização política da sociedade é global, e todos os fatores citados acima, e muitos outros, respondem o porquê dessa mudança, mas o foco aqui é a mudança em si. Só existe Bolsonaro por que o mesmo representa uma parcela de nossa população, assim como só existe Pablo Marçal pelos mesmos motivos. Não é agradável admitir que metade, ou parcela considerável, da população brasileira, nossos conterrâneos, se identificam com essas figuras abjetas. Dói reconhecer que as falácias, e as palavras de ódio dessas figuras reverberam tão alto no debate público, mas- para o bem ou para o mal- essa realidade está posta, e pode piorar. Se Marçal tem sucesso, com sua estratégia muito mais agressiva e estridente do que a de Bolsonaro em 2018, ele vira um “case de sucesso” que com certeza vai virar uma “trend” na eleição de 2026.
A imagem que temos da população brasileira, o estereótipo, é de um povo divertido, com samba no pé, um copo de cerveja na mão, e com aquele papo solto, acalorado. Mas o Brasil tem seu lado conservador e não de hoje. Nós somos, majoritariamente, um povo conservador. Qualquer pesquisa nacional mostra que somos um povo cristão, a cada dia mais evangélico, e que recusa a maioria das pautas liberais progressistas do século XXI. Não somos à favor do aborto legal, nem da legalização de maconha e somos uma sociedade punitivista, que apoia o sistema carcerário do jeito cruel que ele se encontra. O conservadorismo brasileiro é histórico, antigo e constante, ele apenas se encontrava dormente, na primeira turbulência ele foi vomitado nas urnas. Esse é o cenário, então, criamos como sociedade essa nova forma radical de fazer política, e agora não temos mais volta, aberto o baú de pandora não há quem o feche. Isso porque, a classe política brasileira pode ser uma infinidade de coisas, mas ela certamente não é boba. Criada a nova direita, através dessa demanda popular, se constituiu uma relação de retroalimentação entre as personalidades políticas populistas e esse setor da sociedade, em que - através das redes sociais - começou-se um processo de manipulação e “embolheficação” em massa da população, que foi se radicalizando e se isolando da realidade material do país, e que no momento se encontra refém e adepta de todos os desejos e anseios dessa nova classe política.
E como resolvemos isso? Como se conversa com uma fatia da população que não quer diálogo? Que vive, para todos os efeitos práticos, em outra realidade que a do resto de nós. Definitivamente a resposta não é simples, e nem será encontrada nesse texto, mas será um processo árduo com certeza no mínimo atingir uma linha pacífica e democrática de convivência. Pois é aí que mora o maior problema desse recorte populacional: eles são, acima de tudo, antidemocráticos. Uma parcela da população cansou da democracia, e por isso, reiteradamente vota em pessoas que são “antissistema”, raivosos, e prometem quebrar tudo, prometem barraco- e quem quer barraco não está afim de discussão razoável- eles querem gritaria, extravasar uma raiva quase gutural que carregam. O único problema é que discussão razoável é o que baseia uma democracia, e gritaria, barraco e raiva gutural são o que precedem governos autoritários.
Assim, uma parcela da população decidiu que cansou de “tudo isso aí”, e gerou uma nova classe política de extrema direita, mas e a Justiça? E a lei? Pois esses candidatos desse espectro político sistematicamente quebram leis eleitorais. Hora aqui, hora acolá, ouvimos que tal juiz pondera sua decisão baseada nas consequências da reação popular. Ou seja, o sistema judiciário presencia o derretimento do debate público e o sequestro da nossa democracia por extremistas e resolve se abster, ponderar, debater em seus fóruns internacionais, e no fim do dia tirar uma longa soneca - como de praxe. Não caçar a candidatura de um candidato, que é claramente ilegal, pois seus eleitores extremistas se revoltarão - é a cristalização da falência do nosso sistema de justiça, da nossa democracia e da nossa moral como nação. Morre diante de nossos olhos o direito liberal, a universalização dos direitos e a igualdade jurídica.
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